Construir Pontes: A Jornada de Estudantes da Guiné-Bissau
Por David Freitas
25 de dezembro de 2024
Vivemos num mundo que se desdobra em múltiplas dimensões, muitas vezes segmentadas pelo eixo norte-sul global. O acesso à educação, à saúde e às oportunidades é frequentemente clivado por esta linha imaginária, que separa realidades e experiências de vida.
A "Na Rota dos Povos" (NRP), no seu compromisso com a promoção da educação e do desenvolvimento, tem apoiado jovens guineenses a estudar em Portugal, proporcionando-lhes oportunidades de crescimento e aprendizagem. Neste ano letivo, nove jovens vindos da região de Tombali, na Guiné-Bissau, tiveram a oportunidade de estudar em Portugal, graças a bolsas de estudo e parcerias estabelecidas com a NRP.
Aproveitando a interrupção letiva de Natal, quisemos conhecer a experiência destes jovens guineenses a estudar em Portugal. Entre desafios de adaptação, sonhos para o futuro e recordações de casa, partilharam connosco um pouco das suas histórias, refletindo sobre o significado de passarem esta época festiva longe das suas famílias.
A adaptação a Portugal

O processo de adaptação foi marcado por dificuldades iniciais relacionadas com a língua, o clima e diferenças culturais. No entanto, o acolhimento das pessoas, a participação em atividades locais e o apoio de colegas e professores foram fundamentais para superar esses obstáculos. A convivência com uma realidade mais organizada e tecnologicamente avançada trouxe lições importantes sobre resiliência e crescimento pessoal.
A Tânia descreve que encontrou uma realidade completamente diferente assim que chegou ao aeroporto, algo que só tinha visto na televisão.
A dificuldade de lidar com o clima é um dos aspetos mais destacados. Mesmo com temperaturas mais elevadas do que é habitual para a época, o calor que se sente na Guiné-Bissau abraça bem mais forte do que aquele que se sente em Portugal. Esta já não é a primeira vez que a NRP apoia estudantes guineenses a estudar em Portugal, e no passado já vi jovens a usarem camisolas de gola alta no verão. O inverno para eles, faz apertar ainda mais as saudades.
Hélder Soares e Liliana Coimbra , dois voluntários da NRP, têm acompanhado estes jovens de mais perto. Hélder destaca a audácia de quem deixa o seu país abraçando este desafio e luta todos os dias para ultrapassar as dificuldades de viver num mundo completamente diferente, em que as coisas mais simples para nós, são muitas vezes um desafio para eles.
Hélder e Liliana destacam que orientá-los é uma tarefa difícil, devido às grandes diferenças culturais, mas que eles vão compensando com a atenção que vão prestando e preocupação que demonstram.
A Educação é o Único Caminho
O Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 4 (ODS4), "Educação de Qualidade" , da Agenda 2030, tem como objetivo garantir o acesso à educação inclusiva, de qualidade e equitativa, promovendo oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos. A NRP tem como moto "A Educação é o Único Caminho" e tem vindo a fornecer material escolar a cerca de 50 escolas na região de Tombali, alcançando cerca de 10 mil alunos.
O Sadú considera que a qualidade da educação é uma das mais importantes forças de Portugal e, certamente por isso, destacou que um dos momentos mais significativos da sua vida foi quando recebeu o visto para poder estudar em Portugal. Um processo que foi extremamente complexo e lento.
O acesso à educação é um direito fundamental, mas que infelizmente está longe de ser uma realidade para muitas crianças e jovens em todo o mundo. Titina refere que, por ter três irmãos mais novos para sustentar, os seus pais não tinham a possibilidade de pagarem as propinas. A maioria das crianças só tem hipótese de estudar se os pais tiverem uma boa situação financeira, ou se as tabancas (aldeias) se organizarem, criando uma escola comunitária.
A Tânia diz que não existe comparação possível entre as escolas Portuguesas e Guineenses, realçando que nas escolas da sua terra natal, a ilha de Como, estas não têm carteiras e que as crianças, nem têm um lápis para poderem escrever.
Mesmo sem as condições ideais, os professores são muitas vezes uma salvação. Mariama perdeu a mãe com 16 anos e o pai com 17 anos, diz que o diretor da escola Canhe Na N'Tungué passou a ser o seu encarregado de educação.
Hedigar acrescenta que na Guiné-Bissau muitos professores dedicam as suas vidas ao trabalho, mas não recebem salários dignos, nem as condições ideais de vida. Considera que os professores carregam o futuro nos ombros, mas não recebem o respeito que merecem.

Uma das coisas que mais marca estes jovens é a proximidade entre professores e alunos em Portugal. A forma como os estes estão sempre disponíveis e preocupados com o sucesso dos alunos é algo que valorizam muito. Como professor, não posso deixar de me sentir orgulhoso por saber que os meus colegas em Portugal estão a fazer a diferença na vida destes jovens. Não deixo também de refletir sobre a desvalorização que existe por parte de muitos dos alunos portugueses em relação à educação. Fiz parte da equipa que selecionou estes jovens e nem consigo descrever a dificuldade que senti em deslocar-me até às suas escolas, com caminhadas longas, pelo meio da lama e ao sol. Muitas destas caminhadas que têm de fazer terminam sem aulas, muitas vezes porque os professores estão em greve devido à falta de pagamento durante meses.
Será que só valorizamos o que não temos? Devemos olhar para a educação como um direito ou um privilégio? Não deveria ser uma escolha.
O(s) presente(s) e o futuro
Sonhar é uma das características mais importantes dos seres humanos. Estes jovens sonham muito. Sonham com o futuro, mas principalmente com o dia em que poderão voltar às suas famílias. No mundo mais a norte, muitos de nós sonham com o presente. Ou com presentes.
O Sadú acredita que quando não saímos da nossa zona de conforto, pensamos que o mundo acaba onde estamos e, por isso, não encaramos as dificuldades, não pensamos no nosso futuro.
E no futuro o que gostariam eles de levar para a Guiné-Bissau?
O Hedigar gostaria de levar tintas para poder pintar a sua escola, o Liceu setorial de Como . Querer pintar a nossa escola é querer crescer com a nossa comunidade. Ele gostaria ainda de tornar mais fácil o acesso ao hospital. A Guiné-Bissau é um dos países com uma das maiores taxas de mortalidade infantil e uma das mais elevadas taxas de mortalidade materna. Num estudo que a NRP ajudou a concretizar, verificou-se que o hospital regional de Catió tinha, em 2020, uma taxa de mortalidade materna perto de 1%.
O Sadú e a Mariama , se pudessem, levariam máquinas para trabalhar a terra. A terra que tudo nos dá, mas que nem sempre tratamos bem. É importante voltarmos a tocar a terra, a cuidar dela. É urgente descalçar-nos e voltar a sentirmos a terra nos pés.

A relação do povo guineense com o arroz é inseparável do quotidiano e uma história de esforço e tradição. Este come-se em qualquer altura do dia, e em qualquer refeição. Em Portugal, até já vi uma francesinha ser acompanhada de arroaz pelos nossos jovens. A Tânia reforça a importância de cultivar arroz. Este serve para pagar propinas, é uma das principais fontes de rendimento. Mas a relação não é fácil, trabalhar a bolanha (terreno pantanoso e fértil onde normalmente é cultivado o arroz) é uma tarefa bem dura. Lembro-me de um grupo de jovens que trabalhava a terra dizerem-me "Salva-me daqui, a bolanha está a matar-me".
O Olívio gostaria de levar zinco para cobrir as casas da sua mãe e do seu irmão porque o telhado é feito de arbustos e na época chuvosa, não impede a chuva de entrar. É muito mais difícil sonhar quando a chuva nos acorda ao meio da noite. Sonha ainda com não voltar a ter fome.
Todos eles gostariam de poderem no futuro contribuir para o desenvolvimento seu país e, talvez por isso, o que mais gostariam de levar de volta é a nossa escola.
Saudades

Uma das coisas que mais me marcou ao ouvir como estes jovens vêm o mundo foi lembrar-me que ainda há para quem a vida são as pessoas. Aqui por "cima", o mundo digitaliza-se e torna-se difícil sair dele. Perdemos nele as nossas crianças. Deixamo-las circular livremente no virtual e sobreprotegemo-las no mundo real. Ouvi recentemente o Professor Carlos Neto dizer que uma criança feliz tem os joelhos esfolados. O mundo virtual não deixa os joelhos esfolados, mas pode rasgar-nos a alma.
Embora se diga que a palavra "saudade" é apenas Portuguesa, senti-la é universal. Se eles pudessem trazer alguma coisa para Portugal, a família seria o que colocariam na mala. O Hedigar não hesitaria e traria a sua mãe, embora a traga todos os dias no coração. O Dino traria o seu irmão, enquanto sonha em terminar o seu curso, para depois obter licenciatura e mestrado.
A cultura Guineense também seria trazida por todos. A Binta descreve a cultura Guineense muito bem, adjectivando-a como vibrante. Quem tem a sorte de conhecer a Guiné-Bissau, compreende perfeitamente o que ela quer dizer. A música, a comida, a dança, a alegria, a cor, a vida.
A Titina acrescenta que a dificuldade de passar esta quadra festiva longe da família torna-se ainda mais difícil porque sabem que na Guiné-Bissau também vão sentir saudades dela, em especial as suas irmãs. Sentir saudades de quem sente saudades de nós é uma dor agravada.
Histórias de Esperança
Os sonhos destes estudantes são inspiradores, aspiram a contribuir para o desenvolvimento da Guiné-Bissau, ajudando as suas comunidades, famílias e país. Planeiam aplicar os conhecimentos adquiridos, especialmente nas áreas de educação, saúde e agricultura.
A esperança por si, não é uma arma, mas alimenta as principais formas de lutas pela conquista de direitos. Roberto destacou os direitos e a liberdade que se sente em Portugal. Tem como meta ser um bom homem estudioso para mais tarde ser um bom trabalhador. Realço o bom. De que serve toda a educação se não for para sermos bons?
Os relatos pessoais destes jovens incluem momentos marcantes de superação e resiliência. Desde histórias de infância difíceis até o impacto de conseguir uma bolsa de estudos, cada estudante demonstra um forte compromisso em transformar as suas circunstâncias e criar um futuro melhor para si e para os seus.
Realçam sempre que o sacrifício deles tem como objetivo ajudar a família e a comunidade. Precisamos mais de um mundo em que os sacrifícios não sejam apenas para proveito próprio, mas sirvam também para ajudar o próximo.
Reflexão
1. O texto menciona o "eixo norte-sul global" e como este afeta o acesso à educação e à saúde. Achas que esta linha imaginária reflete uma realidade justa? Porquê?
2. O lema da NRP é "A educação é o único caminho". Como achas que a educação pode transformar vidas e comunidades?
3. A Tânia realça as diferenças entre as escolas da Guiné-Bissau e de Portugal. Que aspetos valorizas mais na tua escola e porquê?
4. O Hedigar gostaria de levar tintas para pintar a escola da sua comunidade. Que ações podemos fazer, individualmente ou em grupo, para ajudar pessoas em situações semelhantes?
5. O texto questiona se valorizamos o que temos. Como vês a educação: como um direito ou um privilégio? Justifica a tua resposta.
6. Muitos jovens referem o desejo de contribuir para o desenvolvimento da sua comunidade. Que sonhos tens para o futuro e como podem beneficiar a sociedade em que vives?
7. A saudade da família e da cultura é um tema forte no texto. Como achas que a distância da família e das tradições pode afetar a experiência de quem vive longe do seu país?
8. O texto menciona vários Objectivos de Desenvolvimeto Sustentável (ODS). Qual destes objetivos achas que é mais urgente alcançar e porquê?
ODS 1: Erradicar a Pobreza
Referências a condições de vida precárias, famílias em situação de pobreza e o desejo de melhorar essas condições.
ODS 4: Educação de Qualidade
Enfatiza o valor da educação, tanto em Portugal quanto na Guiné-Bissau, destacando o desejo de levar melhorias ao sistema educacional guineense.
ODS 8: Trabalho Digno e Crescimento Económico
Aspirações de encontrar trabalho digno e contribuir para o desenvolvimento da Guiné-Bissau.
ODS 17: Parcerias para a Implementação dos Objetivos
O papel das bolsas de estudo e parcerias entre países (Guiné-Bissau e Portugal) para promover o desenvolvimento.




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